A Oficina de Fundamentação e Instrumentação nos alimentou com o espírito crítico a respeito da leitura e experimentação da cidade em que vivemos. Sem que tivéssemos inicialmente a pretensão de reivindicarmos o ambiente urbano, aos poucos fizemos muito nessa direção. Primeiro começamos por entender os princípios que motivam a organização das cidades – latu senso -, e na seqüência, procuramos identificar as origens e desenvolvimento da cidade de Belo Horizonte. Estas contribuições enriquecedoras foram oferecidas pelos professores Altamiro e Hamilton, oportunamente alencados no início da disciplina.
Com doses generosas de Hertzberger em Lições de Arquitetura, pudemos vislumbrar algo além do que os colegas já formados, em sua maioria, vem produzindo na cidade e no mundo. Entrar no circuito e itinerário habitual do curso, sem antes nos posicionarmos a respeito de que ritmo e que direção desejamos adotar seria crueldade com jovens entusiasmados pela mudança do mundo. Pretender uma arquitetura mais para as pessoas e menos para os encartes publicitários que servem ao mercado imobiliário – talvez seja essa a máxima da vez. Munidos de parafernália tecnológica com softwares que usam e abusam da tridimensionalidade e de efeitos visuais, arquitetos e estagiários vem se afastando do princípio que condiciona a profissão: criar e organizar o espaço PARA AS PESSOAS. Não raro recebemos nos sinais de trânsito encartes e panfletos de ofertas em condomínios fechados, prédios e apartamentos sofisticados ou cujo preço torna imperdível o empreendimento, já que é disso mesmo que a arquitetura vem se servindo, EMPREENDIMENTO. Mas e a criação, a plasticidade, o aprofundamento na ligação entre o ser humano e o espaço? E o estranhamento, análise, síntese e projeção dos assuntos humanos, sociais, culturais? E as relações desse conhecimento com o produzir, com o habitar? Para onde vai? Parece que fica restrito a algumas cadeiras do curso de arquitetura, lá bem no início do curso.
Hertzberger foi muito feliz ao comparar o arquiteto com o alfaiate – figura em extinção nos dias atuais. Disse que o alfaiate não se esforça por fazer apenas roupas bonitas. As roupas devem ser bonitas e vestir bem quem as encomendou. Mais que isso, deveriam servir bem a qualquer pessoa. Fazer qualquer roupa, a qualquer tempo, sob os ditames de qualquer moda é o que fazem as lojas de departamento. Arquitetar caixotes verticais com as pseudobenesses propagadas aos quatro ventos pelos publicitários é arquitetura de magazine. Reproduzir modelos de moradias que nada têm a ver com quem nelas vai morar não é coisa de arquiteto. É assunto de técnico em sketch up.
Isso aprendemos com a disciplina. Fizemos um trabalho de intervenção no rio Arrudas, imagem quase morta na paisagem citadina. Referência de algo que a cidade já foi e que ingratamente, já nos seus estertores, recolhe lixo e detritos da indiferença urbana. Recuperar o Arrudas, recuperar a paisagem. Propiciar que belorizontinos reivindiquem o rio para si. Roubar o espaço que os automóveis já nos roubaram – com o nosso velado consentimento. Usamos um dos softwares contemporâneos a nosso favor. Ao invés de consertar bundas de modelos para revistas masculinas, o photoshop nos serviu para apagar, remendar, desconstruir e reconstruir a paisagem do rio Arrudas. Mesmo que em idéia, fomos felizes. Até representantes da prefeitura se engasgaram com o pomo de Adão dos Boulevard´s permitidos pela lógica de circulação da cidade. Que se engasguem cada vez mais.
E ao percebermos um grande foco de discussão, o império automobilístico na dinâmica da cidade, miramos nessa direção e desenvolvemos o segundo trabalho. Hertzberger e Anne Jacobs nos serviram com pensamentos de que a postura reivindicativa não é exagero e sim necessidade para quem se julga pertencedor e possuidor da cidade. Desprivilegiemos os desmemoriados e tragamos à tona o que já foi a rua e a calçada. Antes os poucos carros pediam permissão às crianças que faziam da rua uma quadra de esportes como o autêntico futebol amador. Amor incondicional de toda criança que vive a infância. Hoje, carros não pedem permissão. Regras a seu favor já ditam a ordem – RESPEITE A SINALIZAÇÃO, sob o risco de ser atropelado.
Por mais muros que a cidade criou em si mesma, os muros mais abissais são os meio-fios que não devem ter mais que 20cm. Não respeitando esse desnível do piso urbano, a lei do homen contemporâneo permite que o atropelado seja o culpado. Dentro de cápsulas cada vez mais velozes, sofisticadas e descartáveis, motoristas se enclausuram e se isolam da realidade urbana. A cidade é conhecida pelos itinerários e pelo tempo de um a três minutos que permitem os semáforos. Depois, em engarrafamentos, munidos de ar condicionado, som ambiente, e agora com televisões e dvd´s, nada mais do mundo exterior importa ao motorista. Será que é tão exterior assim? Diante da carrocracia, o trabalho VAGAS VOLANTES, se fez notar. No espaço de uma vaga condicionada pela lei do rotativo gerenciada pela BHTRANS, ocupamos e desenvolvemos novo uso, algo diferente do que o dormitório de um veículo. Vários de nós se envolveram com muitas idéias. Acampamento, centro de recreação, dispositivo para abastecimento energético a partir de energia motriz (pedalando bicicletas), churrasco, brincadeiras pueris, pesque-pague... Coisas que gostaríamos de fazer na cidade, que certamente mereceríamos sem termos que nos deslocar para praças, clubes ou shopping centers. Fizemos ali, por algumas horas em um despretensioso sábado, nos arredores da faculdade de arquitetura.
Que após tamanho investimento em realidade produzido pela oficina, o promissor arquiteto não se perca no decorrer do curso na alienação natural que envolve a educação formal do nosso país. Que não se amarre no tecnicismo aprendido neste e em outros cursos, que reinventa milhares de vezes um canivete suíço e o joga no deserto. Para quê, para quem?
Que não sirva à empresa capital, sob a lógica do lucro como referência, mas que sirva a empresa do humanismo, sob a lógica da convivência.
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